Certa feita, eu estava fazendo a defesa de um réu perante o Tribunal do Júri, quando o Juiz Presidentes da sessão, a pedido do advogado assistente da acusação, me proibiu de mostrar diretamente aos jurados as provas em que amparava minhas argumentações defensivas.
Segundo Sua Excelência, eu só poderia mostrar as provas contidas nos autos se fosse por meio do oficial de justiça. Ou seja, eu deveria argumentar, e o oficial, como se fosse um auxiliar meu, mostraria as provas por mim referidas na minha argumentação.
Diante daquele inusitado ato, ponderei a Sua Excelência que tal proibição feria de morte a direito à ampla e plena defesa do réu, nulificando irremediavelmente o julgamento. Não houve jeito. A proibição foi mantida.
Por considerar ilegal e inconstitucional aquela proibição, resolvi abandonar o julgamento, para preservar o direito de defesa do réu e, também, não prejudicá-lo.
Em razão desse abandono, a sessão plenária foi encerrada e designada nova data para realização do julgamento do réu.
Receoso de que Sua Excelência viesse a proibir-me novamente de mostrar diretamente aos jurados as provas dos autos, impetrei um HC no TJPA, pleiteando fosse assegurado ao réu o direito à ampla e plena defesa no tribunal do júri. Eis a as razões da impetração*:
Excelentíssima Senhora Desembargadora
Presidente do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado do Pará
CÉSAR RAMOS DA COSTA, brasileiro, solteiro, advogado inscrito na OAB/PA sob o no. 11.021, arrimado nos arts. 5º, XXXVIII, a, LV e LXVIII, da Constituição Federal, e 647 e 648, I, do Código de Processo Penal, vem, perante este Tribunal, impetrar HABEAS CORPUS PARA GARANTIA DO DIREITO À AMPLA E PLENA DEFESA NO TRIBUNAL DO JÚRI, com pedido de LIMINAR, em favor de J.L.P.A, nacionalidade, estado civil, profissão, residente e domiciliado em Belém/PA, contra ato ilegal e inconstitucional do JUIZ TITULAR DA ... VARA DO TRIBUNAL DO JÚRI DA COMARCA DE_____________/PA, pelos fundamentos fáticos e jurídicos seguintes:
1. SINOPSE FÁTICA
Por força de protesto por novo júri, no dia.. do mês passado, o Paciente foi submetido a segundo julgamento perante o tribunal popular presidido pelo supracitado Juiz, sob a acusação de ter concorrido para a prática dos crimes de duplo homicídio triplamente qualificado (CP, 121, § 2º, I, III e IV, c/c/ art. 69).
O fato é que, naquela sessão plenária, atendendo a pedido do advogado assistente da acusação, o Juiz coator, num ato visivelmente ilegal, proibiu o Impetrante de mostrar diretamente aos jurados as provas das alegações defensivas, ao argumento de que deveria valer-se de oficial de justiça para tanto. Ou seja, segundo aquele magistrado, somente pelas mãos do oficial de justiça é que as provas inseridas nos autos poderiam ser mostradas aos juízes de fato (cf. DVD, vídeo 6, time 06:40:29 a 06:42:05).
Ressalte-se que essa proibição se deu quando o Impetrante já estava promovendo a defesa oral havia mais de 40 minutos, precisamente no instante em que mostrava aos jurados cópias dos autos, cópias essas que confirmavam a versão defensiva.
Assim, aquele Juiz cerceou a ampla e plena defesa do Paciente, o que fez com que o Impetrante e seus auxiliares, em protesto, abandonassem o júri.
Em face do ocorrido na aludida sessão, o Paciente está imbuído do justo e concreto receio de que a indigitada autoridade coatora, no julgamento designado para o vindouro dia... de junho deste ano, pratique o mesmo ato constritivo do direito de defesa.
Daí a presente impetração, por meio da qual se pretende garantir ao Paciente o direito a que seu defensor, na nova sessão do júri, apresente diretamente aos jurados as provas que, contidas nos autos, amparem a versão da defesa.
2. A COAÇÃO ILEGAL: O CERCEAMENTO DE DEFESA
Permissa venia, merece prosperar a pretensão ora deduzida.
Com efeito, não há vedação legal a que o defensor do réu, no tribunal do júri, dirija-se aos jurados e apresente diretamente a eles as provas que, a seu ver, confirmam as alegações defensivas.
Ademais, esse comportamento defensivo está contemplado pela garantia constitucional da plenitude da defesa no tribunal do júri (CF, art. 5º, XXXVIII, “a”), sendo praticado inclusive em julgamentos presididos pelo mesmo magistrado, que, até então, nunca havia proibido tal conduta (cf. DVD, vídeo 6, time 06:40:29 a 06:43:08).
Aliás, cumpre salientar que a apresentação das provas diretamente aos jurados é uma tradição dos advogados de defesa e dos promotores que atuam no tribunal do júri.
Trata-se, na espécie, do direito de apresentar as provas ao julgador, direito esse que dimana do direito à ampla e plena defesa no tribunal do júri.
A propósito, ANTÔNIO SCARANCE FERNANDES, ao discorrer sobre provas no processo penal, assevera:
“Liga-se o direito à prova estritamente aos direitos de ação e de defesa. De nada adiantaria a autor e réu o direito de trazer a juízo suas postulações se não lhes fosse proporcionada oportunidade no desenvolvimento da causa para demonstrar suas afirmações. Apresenta, em decorrência de tal ligação, a mesma natureza dos direitos de ação e de defesa, ou seja, um direito subjetivo público ou cívico” (PROCESSO PENAL CONSTITUCIONAL. 5. ed., São Paulo, Revista dos Tribunais, 2007, p. 78).
De fato, as provas servem para comprovar a existência dos fatos alegados pelas partes. Por isso, devem ser analisadas pelo julgador, a fim de que possa concluir sobre a veracidade, ou não, dos fatos da causa.
No caso do júri, as provas devem ser valoradas pelos jurados, para que possam fazer seus julgamentos, tirar suas conclusões.
Como ensina PAULO RANGEL, “a prova, assim, é a verificação do thema probandum e tem como principal finalidade (ou objetio) o convencimento do juiz. Tornar os fatos, alegados pelas partes, conhecidos do juiz, convencendo-o de sua veracidade. Portanto, o principal destinatário da prova é o Juiz” (DIREITO PROCESSUAL PENAL. 9. ed., RJ, Lumen Juris, 2005, p. 407).
Ora, se o advogado não puder levar aos olhos dos jurados, que são os juízes da causa em debate, as provas que embasam a versão da defesa, como poderá convencê-los da veracidade dos fatos que alega em favor do réu?
Assim, no tribunal do júri, incumbe ao advogado, para tornar plena a defesa do réu, analisar as provas e apresentá-las aos jurados, para que estes delas tomem conhecimento.
Nesse diapasão, o precitado prof. SCARANCE, citando GUILHERME NUCCI, ao comentar sobre o princípio constitucional da plenitude de defesa, afiança:
“Quis o legislador constituinte, além da ampla defesa geral de todos os acusados, assegurar aos acusados do júri mais, ou seja, a defesa plena, levando em conta principalmente o fato de que, diferentemente das decisões judiciais nos processos em geral, a decisão dos jurados não é motivada. Pode o juiz, no seu julgamento, de ofício, admitir em favor do acusado tese não apresentada pela defesa, mas os jurados não podem. Assim, há que se exigir mais do advogado no júri, e, daí, a necessidade de que garanta ao acusado a plenitude da defesa, ou seja, uma defesa completa. Trata-se de garantia especial e que se aplica à fase do plenário” (ob. cit. 187/8).
Deveras, no júri, se exige mais do advogado; exige-se que ele alegue e demonstre as provas de suas afirmações, a fim de que logre convencer os jurados da tese ou teses que apresenta.
No caso, a prevalecer o entendimento do Juiz coator, criar-se-á a seguinte e esdrúxula situação: o advogado argumenta, e o oficial de justiça apresenta as provas. Um absurdo!
Frise-se que o oficial de justiça é um agente auxiliar do juízo, e não do advogado. No momento em que este desenvolve sua defesa, não se pode admitir que entre ele e os jurados se interponha terceira pessoa, a exemplo do oficial de justiça. O contato com os jurados deve ser direto. E mais: durante sua fala, o advogado só não pode praticar ato ilegal ou que fira a moral e os bons costumes.
Nessa ordem de idéias, calha ponderar que o Supremo Tribunal Federal tem entendido que o HC é cabível sempre que um ato, direta ou indiretamente, representa ameaça ilegal à liberdade ambulativa do indivíduo, a exemplo do que se dá no cerceamento de defesa.
A respeito, confira-se:
“I. Habeas corpus: inviabilidade: incidência da Súmula 691 ("Não compete ao Supremo Tribunal Federal conhecer de "habeas corpus" impetrado contra decisão do Relator que, em "habeas corpus" requerido a Tribunal Superior, indefere a liminar"). II. Inquérito policial: inoponibilidade ao advogado do indiciado do direito de vista dos autos do inquérito policial. 1. Inaplicabilidade da garantia constitucional do contraditório e da ampla defesa ao inquérito policial, que não é processo, porque não destinado a decidir litígio algum, ainda que na esfera administrativa; existência, não obstante, de direitos fundamentais do indiciado no curso do inquérito, entre os quais o de fazer-se assistir por advogado, o de não se incriminar e o de manter-se em silêncio. 2. Do plexo de direitos dos quais é titular o indiciado - interessado primário no procedimento administrativo do inquérito policial -, é corolário e instrumento a prerrogativa do advogado de acesso aos autos respectivos, explicitamente outorgada pelo Estatuto da Advocacia (L. 8906/94, art. 7º, XIV), da qual - ao contrário do que previu em hipóteses assemelhadas - não se excluíram os inquéritos que correm em sigilo: a irrestrita amplitude do preceito legal resolve em favor da prerrogativa do defensor o eventual conflito dela com os interesses do sigilo das investigações, de modo a fazer impertinente o apelo ao princípio da proporcionalidade. 3. A oponibilidade ao defensor constituído esvaziaria uma garantia constitucional do indiciado (CF, art. 5º, LXIII), que lhe assegura, quando preso, e pelo menos lhe faculta, quando solto, a assistência técnica do advogado, que este não lhe poderá prestar se lhe é sonegado o acesso aos autos do inquérito sobre o objeto do qual haja o investigado de prestar declarações. 4. O direito do indiciado, por seu advogado, tem por objeto as informações já introduzidas nos autos do inquérito, não as relativas à decretação e às vicissitudes da execução de diligências em curso (cf. L. 9296, atinente às interceptações telefônicas, de possível extensão a outras diligências); dispõe, em conseqüência a autoridade policial de meios legítimos para obviar inconvenientes que o conhecimento pelo indiciado e seu defensor dos autos do inquérito policial possa acarretar à eficácia do procedimento investigatório. 5. Habeas corpus de ofício deferido, para que aos advogados constituídos pelo paciente se faculte a consulta aos autos do inquérito policial e a obtenção de cópias pertinentes, com as ressalvas mencionadas” (STF – HC 90232/AM – 1ª T – Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE – j. 18/12/2006 – DJ 02/03/2007).
Outro não é o entendimento consagrado no Superior Tribunal de Justiça. Nesse sentido:
“CRIMINAL. HC. HOMICÍDIO. PEDIDO DE DILIGÊNCIA FORMULADO PELA DEFESA INDEFERIMENTO PELO MAGISTRADO. DISPENSABILIDADE. CERCEAMENTO DE DEFESA CONFIGURADO. PREJUÍZO AO RÉU. REALIZAÇÃO DE PERÍCIA. DETERMINAÇÃO. TESE DA DEFESA. ORDEM CONCEDIDA. I. Hipótese em que o indeferimento da diligência requerida acarretou cerceamento de defesa e, conseqüentemente, prejuízo ao réu, na medida em que poderia servir para demonstrar sua inocência. II. Magistrado singular que indeferiu o pleito defensivo, entendendo pela sua dispensabilidade, sob o fundamento de que qualquer guia rodoviário traria a informação buscada, isto é, "a distância em KM entre as cidades de Volta Redonda e Duque de Caxias" e que qualquer matemático seria hábil a demonstrar o tempo necessário para percorrer o referido itinerário. III. Necessidade de realização da perícia para "a verificação do tempo gasto no percurso entre as cidades de Volta Redonda e Duque de Caxias", de modo a se considerar "uma série de variáveis" não constantes de qualquer guia rodoviário. IV. Vislumbrada a necessidade da efetiva realização da perícia técnica, sob pena de cercear o direito de defesa do réu, que busca provar sua inocência. V. Deve ser determinada a realização da diligência, conforme requerido pela defesa. VI. Ordem concedida, nos termos do voto do Relator” (STJ – HC 60482/RJ – 5ª T – Rel. Min. GILSON DIPP – j. 28/11/2006 – DJ 05/02/2007) (grifamos).
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Portanto, Excelência, além de cabível, o presente writ desafia concessão, porquanto o ato do juiz coator carece de legalidade. Melhor: é inconstitucional.
3. DA NECESSIDADE DA LIMINAR
Data venia, Excelência, o caso reclama a concessão de liminar para sobrestar o feito ou para garantir a plenitude da defesa do Paciente.
Os requisitos dessa medida acautelatória se fazem presentes.
O fumus boni iuris exsurge dos próprios fatos, donde se constata com uma clareza solar o cerceamento de defesa que foi imposto ao Paciente.
Já o periculum in mora dimana da circunstância consistente em que, se não deferida a providência pleiteada, o Paciente sofrerá inquestionável prejuízo em sua defesa, pois, na próxima sessão do dia... de junho, seu defensor não poderá apresentar aos jurados as provas que respaldam a versão defensiva.
Destarte, espera-se que outra não seja a manifestação primeira desta Casa Judicante senão a de conceder a liminar ora pretendida.
4. CONCLUSÃO
Ante todo o exposto e sem querer incorrer em vã logomaquia, o Impetrante postula:
a) a concessão da LIMINAR ora requerida, determinando o sobrestamento do júri marcado para o próximo dia... de junho, até o julgamento do mérito deste writ; ou garantindo ao Paciente o direito de, por meio de seu defensor, apresentar livre e diretamente as provas ao Conselho de Sentença; e
b) no mérito, seja concedida definitivamente a ordem impetrada em favor do Paciente supraqualificado, para o fim de garantir a plenitude da defesa no tribunal do júri.
Por derradeiro, o Impetrante declara, com base no art. 544, § 1º, 2ª parte, c/c art. 365, IV, ambos do CPC, que os documentos que instruem este HC conferem com os originais contidos nos autos do processo nº..., que se encontram no Juízo coator.
No mais, Excelência, espera-se por Justiça!
Nesses termos,
Pede deferimento.
Local, data.
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CÉSAR RAMOS DA COSTA
OAB/PA no...
* Trabalho publicado na Revista Prática Jurídica, Editora Consulex, ano X, no. 110, de maio de 2011, p. 60-62.