A AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA COMO MEDIDA DE PROTEÇÃO DE DIREITOS HUMANOS[1]
THE CUSTODY HEARING AS HUMAN RIGHTS PROTECTION MEASURE
César Ramos da Costa[2]
Plínio de Freitas Turiel[3]
Resumo: A Audiência de Custódia vem sendo implantada paulatinamente pelos Tribunais brasileiros. O Conselho Nacional de Justiça – CNJ tem incentivado sua implantação. Essa espécie de audiência permite ao Estado-juiz analisar em exíguo tempo a legalidade e necessidade da prisão, bem como se houve, ou não, violação de outros direitos do preso. Nos Estados onde já foi implantada, a Audiência de Custódia tem se mostrado eficaz, contribuindo para prevenir a violação dos direitos dos presos e reduzir a população carcerária. Assim, a Audiência de Custódia constitui uma medida de proteção de direitos humanos dos presos. Daí a necessidade de sua implantação em todo o Brasil. Este artigo abordará esses aspectos da Audiência de Custódia.
Palavras-chave: Audiência de Custódia. Direitos humanos. Presos. Medida de proteção. Necessidade. Implantação.
Abstract: Custody Hearing has gradually been implemented by the Brazilian courts. The National Council of Justice - CNJ- has encouraged its implementation. This kind of hearing allows the state in its judicial capacity in analyzing in tiny time the legality and necessity of prison, and if there was or there was not violation of other rights of the prisoner. There are states where the Custody Hearing was already implemented and it has proven its effective in helping to prevent the violation of prisoners' rights and reduce the prison population. Thus, the Custody Hearing is a measure of protection of human rights of prisoners. Hence, it is claimed the need for its implementation in Brazil. This article will address these aspects of Custody Hearing.
Keywords: Custody Hearing. Human rights. Prisoners. Protective measure. Implementation.
Sumário: 1. Introdução – 2. Audiência de Custódia - 2.1. O que é Audiência de Custódia e qual sua finalidade? - 2.2. Fundamento jurídico da Audiência de Custódia – 3. A Audiência de Custódia no direito brasileiro - 3.1. A necessidade da implantação da Audiência de Custódia – 3.2. A audiência de custódia e habeas corpus – 4. Audiência de Custódia e direitos humanos – 4.1. Direitos humanos protegidos pela Audiência de Custódia – 4.2. Audiência de Custódia e as garantias constitucionais referentes à prisão – 5. Conclusão – 6. Referências.
1 INTRODUÇÃO
O Brasil assumiu perante a comunidade e os organismos internacionais o compromisso de proteger, defender e implementar os direitos humanos, incluindo os direitos das pessoas presas.
Essa obrigação decorre do fato de ser signatário da Declaração Universal dos Direitos Humanos, do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos e da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica).
Décadas se passaram desde que o Brasil subscreveu referidos documentos jurídicos internacionais e pouco se avançou na adoção de medidas efetivas de proteção dos direitos humanos dos presos.
O que se viu nesse período foram violações de direitos humanos por parte do próprio Estado brasileiro. Exemplo disso é a superlotação carcerária, maus-tratos e torturas de presos, demora no julgamento e desrespeitos aos direitos e garantias fundamentais da pessoa que tem a desdita de ser presa.
Entretanto, a partir de meados do ano passado (2014), ganhou espaço no âmbito do Poder Judiciário brasileiro o debate sobre a implementação da chamada “Audiência de Custódia”, como forma de garantir ao preso o seu direito de ser levado à presença de um juiz, para que este analise todos os aspectos ligados à sua prisão.
Objetivo deste artigo é analisar, sem a pretensão e esgotar o assunto, a importância da Audiência de Custódia como medida de proteção de direitos humanos dos presos, especialmente o direito ao contato com o juiz em prazo exíguo, o direito de não sofrerem qualquer espécie de violência e o direito de terem assegurados os seus direitos e garantias constitucionais.
2 AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA
2.1 O QUE É AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA E QUAL SUA FINALIDADE?
A Audiência de Custódia é uma audiência que viabiliza o contato da pessoa presa com o juiz pouco tempo depois de sua prisão.
Para Lima (2015, p. 927), a Audiência de Custódia “pode ser conceituada como a realização de uma audiência sem demora após a prisão em flagrante, permitindo o contado imediato do preso com o juiz, com um defensor (público, dativo ou constituído), e com o Ministério Público” (grifo do autor).
Em termos gerais, a Audiência de Custódia consiste no seguinte: em vez de ser encaminhado à Justiça apenas o auto de prisão em flagrante no prazo de 24 (vinte e quatro) horas, como manda o § 1º do art. 306 do Código de Processo Penal (CPP), o próprio preso já será apresentado em Juízo juntamente com o auto flagrancial. Assim, no lugar da análise gélida do auto de prisão em flagrante, o juiz ouve o preso na forma prevista nas normas que regulamentarem a matéria, após o que adotará uma das medidas previstas no art. 310 do CPP, com a redação que lhe deu a Lei n° 12.403, de 4 de maio de 2011.
Esta é a novel redação do art. 310 do CPP, in verbis:
Art. 310. Ao receber o auto de prisão em flagrante, o juiz deverá fundamentadamente:
I - relaxar a prisão ilegal; ou
II - converter a prisão em flagrante em preventiva, quando presentes os requisitos constantes do art. 312 deste Código, e se revelarem inadequadas ou insuficientes as medidas cautelares diversas da prisão; ou
III - conceder liberdade provisória, com ou sem fiança.
Ainda na Audiência de Custódia, o juiz poderá substituir a prisão preventiva por prisão domiciliar, nas hipóteses legais.[4]
É indubitável que, na Audiência de Custódia, o juiz poderá melhor atender ao disposto no referido art. 310 do CPP.
Nesse diapasão, calha ponderar que ainda não há uniformidade na maneira de implantação e funcionamento da Audiência de Custódia, devido à falta de legislação federal sobre a matéria. Assim, cada Judiciário, estadual ou federal, pode adotar seu próprio modelo de Audiência de Custódia. O importante é que seja garantido ao preso em flagrante a audiência com o juiz, sem demora.
O contado do preso com o juiz certamente vai influenciar na decisão judicial sobre a convalidação, ou não, da prisão documentada no auto de prisão em flagrante.
A propósito, Lima (2015, p. 927-928) adverte:
Quando a convalidação judicial da prisão em flagrante é feita sem a apresentação do preso em flagrante, ou seja, tão somente com a remessa dos autos do APF à autoridade judiciária, a decisão judicial acaba sendo influenciada exclusivamente pela opinião da autoridade policial e do órgão do ministerial, que geralmente se manifestam a favor da conversão em prisão preventiva (ou temporária). Daí a importância da audiência de custódia. A perspectiva de uma visão multifocal sobre a (des) necessidade de manutenção da custódia cautelar proporcionada por essa dialética inicial decorrente do contato imediato entre o juiz e o flagranteado abre os horizontes da cognição judicial, enriquecendo o próprio juízo de convalidação judicial da prisão em flagrante.
A Audiência de Custódia tem por finalidade: a) garantir ao preso em flagrante o contato com o juiz, sem demora; e b) a partir desse contato, permitir ao juiz obter do preso informações pessoais que não costumam ficar registradas no auto de prisão em flagrante, de tal sorte que possa verificar, com mais segurança, a legalidade e necessidade da prisão, constatar eventuais maus-tratos ou tortura e garantir os direitos do preso.[5]
Embora se tenha falado em Audiência de Custódia apenas para os presos em flagrante, nada impede que essa espécie de audiência também seja realizada nos casos de prisão preventiva, oportunidade em que juiz poderá reavaliar a necessidade de manter, ou não, a prisão.
2.2 FUNDAMENTO JURÍDICO DA AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA
A Audiência de Custódia tem seu fundamento jurídico em normas contidas em Tratados e Convenções internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil é signatário e que são aplicáveis internamente.
O primeiro documento normativo internacional a respaldar juridicamente a implantação da Audiência de Custódia é o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, adotado pela XXI Sessão da Assembleia-Geral das Nações Unidas (ONU), em 16 de dezembro de 1966, que preconiza, em seu art. 9º, n. 3, primeira parte, in verbis:
ARTIGO 9º
........................................................................................................................................
........................................................................................................................................
- Qualquer pessoa presa ou encarcerada em virtude de infração penal deverá ser conduzida, sem demora, à presença do juiz ou de outra autoridade habilitada por lei a exercer funções judiciais e terá o direito de ser julgada em prazo razoável ou de ser posta em liberdade (...). (grifo nosso).
O segundo documento jurídico internacional é a Convenção Americana de Direitos Humanos de 1969, conhecida como Pacto de San José da Costa Rica, que positiva, em seu art. 7º, n. 5, verbo ad verbum:
Artigo 7º - Direito à liberdade pessoal
........................................................................................................................................
........................................................................................................................................
- Toda pessoa presa, detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz ou outra autoridade por lei a exercer funções judiciais e tem o direito de ser julgada em prazo razoável ou de ser posta em liberdade, sem prejuízo de que prossiga o processo. Sua liberdade pode ser condicionada a garantias que assegurem o seu comparecimento em juízo. (grifo nosso).
Ressalte-se que tanto o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos quanto a Convenção Americana sobre Direitos Humanos já foram incorporados ao ordenamento jurídico brasileiro, tendo, por isso mesmo, plena aplicabilidade no território nacional. O Pacto Internacional foi incorporado pelo Decreto n° 592, de 6 de julho de 1992, e a Convenção Americana o foi pelo Decreto n° 678, de 6 novembro de 1992.
E, como já decidiu o STF no Recurso Extraordinário 466.343/SP, esses dois documentos jurídicos internacionais gozam de um status supralegal, estando acima da legislação ordinária interna, mas abaixo da Constituição da República.[6]
Nessa conjuntura, Delmanto Júnior (2010) observa:
Desde que o Brasil ratificou a Convenção Americana sobre Direitos Humanos e o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos de Nova Iorque, existe, em nosso ordenamento jurídico, o dever (reiteradamente desrespeitado) de as autoridades policiais apresentarem a um Juiz de direito o preso em flagrante (grifo do autor).
De fato, sendo signatário do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (1966) e da Convenção Americana de Direitos Humanos (1969), o Brasil obrigou-se, via Poder Judiciário, a garantir a toda pessoa presa o direito de ser conduzido, sem demora, à presença de uma autoridade judicial competente para decidir sobre sua situação prisional.
E a efetivação desse direito humano previsto no art. 9º, item 3, do referido Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, e no art. 7º, item 5, da predita Convenção Americana sobre Direitos Humanos tem sido feita pela implementação da Audiência de Custódia.
3 A AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA NO DIREITO BRASILEIRO
A Audiência de Custódia já é uma prática em inúmeros países da América do Sul, como Peru, Argentina e Chile (LIMA, 2015).
No Brasil, porém, essa prática é bem recente. Está na sua fase “experimental”.
A Audiência de Custódia ainda não faz parte da legislação federal brasileira. Entretanto, tramita no Congresso Nacional o Projeto de Lei do Senado n° 554/2011, que tem por objetivo alterar a atual redação do § 1º do art. 306 do CPP e, assim, criar legalmente o instituto da Audiência de Custódia, tornando obrigatória sua realização pelo Poder Judiciário nacional, seja na esfera estadual, seja na federal.
Como é cediço, o § 1º do art. 306 do CPP dispõe in litteris:
Art. 306 .........................................................................................................................
- 1º Em até 24 (vinte e quatro) horas após a realização da prisão, será encaminhado ao juiz competente o auto de prisão em flagrante e, caso o autuado não informe o nome de seu advogado, cópia integral para a Defensoria Pública.
Pelo referido Projeto de Lei, passaria a ter esta letra:
Art. 306 .........................................................................................................................
- 1o No prazo máximo de vinte e quatro horas depois da prisão, o preso deverá ser conduzido à presença do juiz competente, ocasião em que deverá ser apresentado o auto de prisão em flagrante acompanhado de todas as oitivas colhidas e, caso o autuado não informe o nome de seu advogado, cópia integral para a Defensoria Pública.
Após receber emenda substitutiva na Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa do Senado (CDH), o Projeto passou a tramitar com esta redação:
Art. 306 .........................................................................................................................
- 1º No prazo máximo de vinte e quatro horas após a prisão em flagrante, o preso será conduzido à presença do juiz para ser ouvido, com vistas às medidas previstas no art. 310 e para que se verifique se estão sendo respeitados seus direitos fundamentais, devendo a autoridade judicial tomar as medidas cabíveis para preservá-los e para apurar eventual violação.
- 2º Na audiência de custódia de que trata o parágrafo 1º, o Juiz ouvirá o Ministério Público, que poderá, caso entenda necessária, requerer a prisão preventiva ou outra medida cautelar alternativa à prisão, em seguida ouvirá o preso e, após manifestação da defesa técnica, decidirá fundamentadamente, nos termos art. 310.
- 3º A oitiva a que se refere parágrafo anterior será registrada em autos apartados, não poderá ser utilizada como meio de prova contra o depoente e versará, exclusivamente, sobre a legalidade e necessidade da prisão; a prevenção da ocorrência de tortura ou de maus-tratos; e os direitos assegurados ao preso e ao acusado.
- 4º A apresentação do preso em juízo deverá ser acompanhada do auto de prisão em flagrante e da nota de culpa que lhe foi entregue, mediante recibo, assinada pela autoridade policial, com o motivo da prisão, o nome do condutor e os nomes das testemunhas.
- 5º A oitiva do preso em juízo sempre se dará na presença de seu advogado, ou, se não o tiver ou não o indicar, na de Defensor Público, e na do membro do Ministério Público, que poderão inquirir o preso sobre os temas previstos no parágrafo 3º, bem como se manifestar previamente à decisão judicial de que trata o art. 310 deste Código. (grifo nosso).
Sem embargo da tramitação do mencionado Projeto de Lei, alguns Tribunais de Justiça dos Estados, incentivados pelo Conselho Nacional de Justiça – CNJ, já vêm implantando, por meio de Resoluções e Provimentos, a Audiência de Custódia.
O primeiro Tribunal a implementar a Audiência de Custódia em sua prática forense foi o Tribunal de Justiça do Maranhão, que o fez no dia 10 de novembro de 2014, por meio do Provimento n° 14/2014 da Corregedoria Geral da Justiça (CGJMA). Esse Provimento não estabeleceu prazo para a realização da Audiência de Custódia, o que só foi feito pelo Provimento n° 21/2014 – CGJMA, revogado pelo Provimento n° 24/2014 – CGJMA, que estabeleceu o prazo de 48 horas, contado do recebimento da comunicação da prisão (Art. 2º). Por enquanto, a Audiência de Custódia está sendo realizada apenas na capital maranhense (São Luís).
O segundo Tribunal a implantar a Audiência de Custódia, como Projeto Piloto, foi o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), que o fez por meio do Provimento conjunto n° 03/2015, da Presidência do Tribunal e da Corregedoria Geral de Justiça. No projeto do TJSP, a Audiência de Custódia deve ser realizada em 24 (vinte e quatro) horas após a prisão em flagrante.
O Conselho Nacional de Justiça – CNJ e o Ministério da Justiça têm incentivado a implantação da Audiência de Custódia por todos os Tribunais brasileiros.
No caso específico do Estado do Pará, o Instituto Paraense do Direito de Defesa – IPDD, no dia 6 de fevereiro de 2015, protocolou no Tribunal de Justiça do Pará (TJPA) um pedido de implantação da Audiência de Custódia no âmbito do judiciário paraense.[7]
O TJPA se mostrou receptivo à ideia e tem trabalhado para implantar na capital paraense (Belém) um Projeto Piloto. Para tanto, tem reunido com os órgãos que participarão desse Projeto. A promessa é que, em agosto, o Estado do Pará também implante a Audiência de Custódia, mesmo que de forma experimental.
A expectativa e a esperança é que, em curto prazo, a Audiência de Custódia seja uma realidade em todos os Estados da Federação, não apenas como “Projeto Piloto”, mas como uma prática generalizada de todos os juízes, haja vista a sua importância para a proteção e defesa dos direitos humanos dos presos.
3.1 A NECESSIDADE DA IMPLANTAÇÃO DA AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA
A implantação da Audiência de Custódia pelos Tribunais brasileiros tem se mostrado uma necessidade que vem ao encontro de todas as políticas criminais voltadas para a proteção e defesa dos direitos humanos dos presos e para o combate à cultura do encarceramento.
Segundo dados do ano de 2014 do Conselho Nacional de Justiça – CNJ, o Brasil tem a terceira maior população carcerária do mundo, ficando à frente da Rússia e atrás apenas dos Estados Unidos e da China, que lideram o ranking dos países que mais prendem.[8]
Quem vive a realidade da Justiça brasileira não nega que, no Brasil, existe uma verdadeira cultura do encarceramento. Apesar das inúmeras garantias e direitos individuais fundamentais previstos na CRFB, os quais assegurariam ao indiciado ou acusado a liberdade durante o curso da investigação e do próprio processo, o que se observa é a prisão como regra.
No Brasil, a prisão provisória tem sido usada como verdadeira antecipação de pena ou com finalidade diversa da que a legitimaria sob a ótica da cautelaridade.
Por conta dessa cultura do encarceramento, o número de presos provisórios no país é na média de 40% da população carcerária.
No Pará, v.g., o percentual de presos aguardando por julgamento é de 43%, segundo dados da própria Superintendência do Sistema Penitenciário do Pará – SUSIPE, entidade responsável pela custódia dos presos no Estado.[9]
O fato é que boa parte dos presos provisórios do Brasil poderia responder à ação penal em liberdade plena ou sob alguma medida cautelar diversa da prisão.
O que se vê, na prática, é que muitos desses presos provisórios são liberados quando têm audiência com o juiz.
Ocorre que se leva cerca de 3 ou mais meses para que a audiência aconteça. Enquanto isso, o preso fica aguardando na cadeia uma solução que poderia chegar mais cedo se lhe fosse garantido o direito de, sem demora, ter contado com o juiz.
É nesse cenário que surge a Audiência de Custódia, já que vai garantir o direito do preso de ser levado à presença de uma autoridade judicial no menor prazo possível, permitindo a essa autoridade analisar com mais segurança e humanidade a situação prisional do preso.
Nesse aspecto, Lopes Jr. e Rosa (2015) asseveram:
A audiência de custódia acaba com o conforto da decisão imaginada pelo flagrante, exige contato humano, com o impacto que proporciona, fazendo com que se possa prender melhor, a partir das razões que forem apresentadas. Nos estados em que já está sendo implementada, muitos opositores se renderam à qualidade do ato, até porque sustenta o lugar de garante do Juiz, tanto pelos flagrantes, prendendo quando for o caso, bem assim evitando que pessoas fiquem presas para além do necessário. Controla-se, por fim, os casos de tortura reais ou inventadas.
Com efeito, a Audiência de Custódia humaniza a decisão judicial acerca da legalidade e necessidade da prisão, bem como permite ao juiz verificar eventuais casos de maus-tratos e tortura de presos, e outras violações de direitos.
Na Audiência de Custódia, o juiz terá melhor base empírica para aplicar, se entender cabíveis, as medidas cautelares diversas da prisão, que foram incorporadas ao Código de Processo Penal pela Lei n° 12.403/2011.
Nesse sentido, a Audiência de Custódia contribuirá sobremaneira para reduzir a superpopulação carcerária. É o que tem se observado nos Estados onde já está funcionando.
No Estado de São Paulo, por exemplo, no primeiro mês de funcionamento, a Audiência de Custódia resultou na liberação de 40% dos presos em flagrante.[10]
No Espírito Santo, a Audiência de Custódia reduziu em 50% o número de presos provisórios que ingressaram no sistema carcerário do Estado.[11]
Só pelo aspecto da redução da superpopulação carcerária a implantação da Audiência de Custódia já seria uma medida necessária e premente.
Contudo, a Audiência de Custódia também contempla outros objetivos que reclamam
sua implantação, a saber: inibe atos de violência física e psíquica contra o preso, previne a violação de direitos constitucionais do preso (ex. direitos ao silêncio), dar cumprimento ao previsto no Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos e à Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica), bem como garante ao preso seu direito à audiência com o juiz em tempo exíguo.
E mais: a Audiência de Custódia dar aplicabilidade ao principio da dignidade da pessoa humana, que, como admoesta Nunes (2007, P. 45), é “o primeiro fundamento do siste-
ma constitucional posto e o último arcabouço da guarida dos direitos individuais”.
É inegável, portanto, a importância da Audiência de Custódia para o sistema penitenciário brasileiro e para a sociedade brasileira, que tem direito a que os direitos humanos das pessoas presas sejam efetivamente respeitados e protegidos pelo Estado.
3.2 A AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA E HABEAS CORPUS
De nada adianta implantar a Audiência de Custódia se não se prevê um remédio jurídico para o caso de sua não realização na forma em que estabelecida.
Pelos objetivos que justificam a sua implantação, parece que o habeas corpus será o instrumento processual tutelador da Audiência de Custódia.
Foi pensando assim que, no dia 25 de janeiro de 2015, numa decisão até então inédita, o desembargador Luiz Noronha Dantas, integrante da 6ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ), concedeu liminar em habeas corpus, determinando a soltura de um homem por ele não ter sido submetido à audiência de custódia no prazo previsto.[12]
No mesmo passo, o Tribunal de Justiça do Paraná (TJPR) concedeu habeas corpus em favor de duas mulheres presas, reconhecendo a obrigatoriedade da Audiência de Custódia.[13]
Deveras, o direito humano do preso à audiência de custódia, como tantos outros, está sob a guarda do habeas corpus. Afinal, “onde quer que haja um direito individual violado, há de haver um recurso judicial para a debelação da injustiça” (BARBOSA, 1892 apud CANOTILHO et al., 2013, p. 358).
4 AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA E DIREITOS HUMANOS
A Audiência de Custódia afigura-se como uma importante medida judicial que vem ao encontro de todas as demais providências de proteção de direitos humanos reconhecidos nas Declarações, Tratados e Convenções internacionais.
Nesse aspecto, Lopes Jr. e Rosa (2015) afirmam:
A audiência de custódia é uma etapa do alinhamento do Processo Penal brasileiro com as Declarações de Direitos Humanos. Talvez por isso seja tão complicado falar dela para quem mantém a mentalidade autoritária. A convenção se aplica ao Brasil e era ignorada, como, aliás, boa parte da normativa de Direitos Humanos. Nenhuma novidade, dirão.
De fato, não se pode conceber a Audiência de Custódia fora do cenário dos Direitos Humanos, pois estes são sua razão de ser.
A expressão direitos humanos compreende “um conjunto de direitos básicos, mínimos, indispensáveis, de todos os seres humanos” (BRITO FILHO, 2015, p. 20).
E, no contexto normativo internacional dos direitos humanos, é inegável que o direito que toda pessoa presa tem de ser levada, sem demora, à presença de uma autoridade judicial qualifica-se como um direito humano e, como tal, merece toda proteção do Estado.
No ponto, assiste razão a Junqueira (2005) quando sustenta que somente a ampla atuação do Estado Democrático de Direito poderá assegurar a plena eficácia dos direitos humanos.
4.1 DIREITOS HUMANOS PROTEGIDOS PELA AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA
Além de garantir o direito humano do preso ao contato com o juiz em prazo exíguo, a Audiência de Custódia permite ao Brasil, por meio dos órgãos do Poder Judiciário, proteger direitos humanos que estão contemplados na Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), especialmente os previstos nos seus arts. 5º, 9º e 10, in verbis:
Artigo 5º. Ninguém será submetido à tortura nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante. (grifo nosso).
Artigo 9º. Ninguém será arbitrariamente preso, detido ou exilado.
Artigo 10. Todo ser humano tem direito, em plena igualdade, a uma audiência justa e pública por parte de um tribunal independente e imparcial, para decidir sobre seus direitos e deveres ou do fundamento de qualquer acusação criminal contra ele.
A Audiência de Custódia também viabiliza a salvaguarda de outros direitos humanos elencados no Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (1966), mormente os direitos dos seus arts. 7º, 9º, n. 1 e 2, e 10, n. 1, in litteris:
ARTIGO 7º
Ninguém poderá ser submetido à tortura, nem a penas ou tratamento cruéis, desumanos ou degradantes. Será proibido sobretudo, submeter uma pessoa, sem seu livre consentimento, a experiências médias ou cientificas. (grifo nosso).
ARTIGO 9º
- Toda pessoa tem direito à liberdade e à segurança pessoais. Ninguém poderá ser preso ou encarcerado arbitrariamente. Ninguém poderá ser privado de liberdade, salvo pelos motivos previstos em lei e em conformidade com os procedimentos nela estabelecidos.
- Qualquer pessoa, ao ser presa, deverá ser informada das razões da prisão e notificada, sem demora, das acusações formuladas contra ela. (grifo nosso)
ARTIGO 10
- Toda pessoa privada de sua liberdade deverá ser tratada com humanidade e respeito à dignidade inerente à pessoa humana. (grifo nosso).
Nessa mesma toada, a Audiência de Custódia enseja a proteção dos direitos humanos reconhecidos no art. 7º, n. 2 e 3, da Convenção Americana de Direitos Humanos:
Artigo 7º - Direito à liberdade pessoal
- Toda pessoa tem direito à liberdade e à segurança pessoais.
- Ninguém pode ser privado de sua liberdade física, salvo pelas causas e nas condições previamente fixadas pelas Constituições políticas dos Estados-partes ou pelas leis de acordo com elas promulgadas.
- Ninguém pode ser submetido à detenção ou encarceramento arbitrários.
Como se infere, a Audiência de Custódia surge no cenário jurídico-forense brasileiro como uma importantíssima medida de proteção dos direitos humanos dos presos.
4.1 AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA E AS GARANTIAS CONSTITUCIONAIS REFERENTES À PRISÃO
A Audiência de Custódia vai otimizar a proteção judicial das garantias constitucionais relativas à prisão. Essas garantias estão previstas nos incisos LXI a LXVI do art. 5º da CRFB, in verbis:
Art. 5º ............................................................................................................................
........................................................................................................................................
LXI - ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei;
LXII - a prisão de qualquer pessoa e o local onde se encontre serão comunicados imediatamente ao juiz competente e à família do preso ou à pessoa por ele indicada;
LXIII - o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado;
LXIV - o preso tem direito à identificação dos responsáveis por sua prisão ou por seu interrogatório policial;
LXV - a prisão ilegal será imediatamente relaxada pela autoridade judiciária;
LXVI - ninguém será levado à prisão ou nela mantido, quando a lei admitir a liberdade provisória, com ou sem fiança. (grifo nosso).
Realmente. A Audiência de Custódia vai potencializar ao Judiciário, sem demora: a) analisar a prisão foi efetuada dentro das hipóteses legais de flagrante (art. 5º, LXI); relaxar imediatamente a prisão ilegal (art. 5º, LXV); b) conceder a liberdade, com ou sem fiança (art. 5º, LXVI); aquilatar se a família do preso foi informada da prisão (art. 5º, LXII) e se lhe foi dado conhecer os responsáveis por esse ato constritivo de sua liberdade (art. 5º, LXIV).
A Audiência de Custódia também vai ensejar ao juiz, a partir do contato com o preso, comprovar se a este foi garantido o direito de saber seus direitos e se lhe foi viabilizado o exercício de seus direitos, especialmente o direito fundamental ao silencio e de não produzir provas contra si (art. 5º, LXIII).
É que, muito embora conste no preâmbulo do interrogatório do preso no auto de prisão em flagrante a advertência de que lhe foi informado sobre seus direitos (incluindo o direito ao silêncio), na prática, são escassas as vezes em que, de fato, isso acontece. Não são raros os casos em que o preso só é realmente advertido do seu direito ao silêncio a quando de seu interrogatório em Juízo.
Ora, “o direito do preso – a rigor o direito do acusado – de permanecer em silêncio é expressão do princípio da não autoincriminação, que outorga ao preso e ao acusado em geral o direito de não produzir provas contra si mesmo (art. 5º, LXIII)” (MENDES; BRANCO, 2014, p. 594).
No mesmo sentido, Canotilho et al. (2013, p. 457) pondera:
A consagração de um direito ao silencia é decorrência da proibição de o acusado depor contra si mesmo, insculpida no artigo 8º, n. 2, letra g, da Convenção Americana sobre Direitos Humanos. Trata-se de regra integrante dos princípios maiores da presunção de inocência e da dignidade da pessoa humana.
Assim, a Audiência de Custódia exsurge como uma oportunidade de o Judiciário prestar ao preso uma tutela judicial efetiva no tocante a seu sagrado direito ao silêncio e à não autoincriminação. Verificando que houve violação desse direito do preso, o juiz poderá não só relaxar a prisão como declarar a nulidade de eventual confissão por ele feita.
5 CONCLUSÃO
As normas internacionais sobre direitos humanos a que o Brasil deve obedecer preveem o direito de toda pessoa presa ser apresentada, sem demora, perante uma autoridade judicial, para que esta decida sobre a legalidade e necessidade de sua prisão, bem como sobre a violação de outros direitos seus. Por corolário, Estado brasileiro tem o dever de, dentro de prazo exíguo, providenciar a apresentação do preso em juízo.
É justamente para viabilizar esse direito humano do preso ao contato com o juiz que surge a Audiência de Custódia.
Nesse sentido, a Audiência de Custódia erige-se em instrumento garantidor de direitos humanos.
Daí a necessidade de que seja adotada pelo Judiciário pátrio, a exemplo do que já acontece no Chile, na Argentina e no Peru.
A Audiência de Custódia contribuirá inexoravelmente para reduzir a superpopulação carcerária, diminuir a tensão nos presídios, coibir violações dos direitos dos presos por parte de agentes policiais.
Com efeito, a Audiência de Custódia é uma providência que precisa ser implementada, seja pelo efeito pragmático de proteger os direitos humanos, seja para dar efetividade às medidas alternativas à prisão, seja pela repercussão positiva no sistema carcerário.
E, ao implementar a Audiência de Custódia na prática forense brasileira, o Brasil ingressará para o seleto grupo dos países que cumprem o que previsto nos Tratados, Declarações e Convenções internacionais sobre direitos humanos.
6 Referências
BRASIL. Código de Processo Penal. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del3689Compilado.htm>. Acesso em: 15/08/2015.
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[1] Artigo apresentado como avaliação parcial do Curso de Especialização em Ciências Criminais, do Centro Universitário do Pará – CESUPA.
[2] Graduado em Direito pela Universidade Federal do Pará – UFPA. Advogado Criminalista. Autor de artigos jurídicos. E-mail: cesarramos.adv@hotmail.com.
[3] Graduado em Direito pela Universidade da Amazônia – UNAMA. Advogado Criminalista. E-mail: plinioturiel@yahoo.com.br.
[4] As hipóteses de prisão domiciliar estão previstas no art. 318 do CPP.
[5] A expressão “tortura” é empregada neste artigo para referir-se à violência física ou psíquica volta para obter a confissão e/ou delação do preso; já a expressão “maus-tratos” refere-se a toda violência que não configura tortura, especialmente aquela praticada por policiais no momento da prisão.
[6] STF, 466.343/SP, Tribunal Pleno, Rel. Ministro CEZAR PELUSO, julgado em 03/12/2008, DJe 05/06/2009.
[7] Informação obtida em: <http://www.ipdd.org.br/conteudo.php?go=249&file=ipdd-pede-implantacao-de-audiencia-de-custodia.html>. Acesso em: 17/07/2015.
[8] Disponível em: < http://www.conjur.com.br/2014-jun-05/brasil-maior-populacao-carceraria-mundo-segundo-estudo>. Acesso em: 18/07/2015.
[9] Dados colhidos no site: <http://issuu.com/acssusipe/docs/junho_2015_-_susipe_em_n__merosalte>. Acesso em: 18/07/2015.
[10] Informação disponível no site: <http://www.conjur.com.br/2015-mar-24/audiencias-custodia-libertam-40-presos-flagrante-mes>. Acesso em: 18/07/2015.
[11] Informação obtida no site: <http://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/79751-audiencias-de-custodia-no-es-reduzem-em-50-o-numero-de-presos-provisorios>. Acesso em: 18/07/2015.
[12] Informação obtida no site: <http://www.conjur.com.br/2015-jan-26/tj-rj-solta-preso-nao-foi-apresentado-juiz-24-horas>. Acesso em: 18/07/2015.
[13] Informação obtida no site: <http://emporio-do-direito.jusbrasil.com.br/noticias/186869255/tjpr-em-decisao-inedita-reconhece-a-necessidade-da-audiencia-de-custodia>. Acesso em: 18/07/2015.