O PRINCÍPIO ACUSATÓRIO NO TRIBUNAL DO JÚRI: A QUESITAÇÃO DE QUALIFICADORA NÃO SUSTENTADA EXPRESSAMENTE PELO MINISTÉRIO PÚBLICO DURANTE A SESSÃO DE JULGAMENTO
É praticamente pacífico na doutrina e jurisprudência o entendimento de que a Constituição Federal contemplou o princípio acusatório, que está implícito no seu art. 129, I, segundo o qual incumbe ao Ministério Público “promover, privativamente, a ação penal pública, na forma da lei”.
Em consequência disso, boa parte da doutrina e da jurisprudência entende que o sistema processual penal brasileiro filiou-se ao sistema acusatório, cuja principal característica é a separação entre o órgão julgador e o órgão acusador.
Como corolário do sistema acusatório, o juiz não pode atuar de ofício, não pode condenar sem acusação penal. Isso porque a ideia que norteia o processo penal do tipo acusatório é de que o juiz está adstrito aos termos da manifestação final do Ministério Público, não podendo o magistrado substituir-se ao órgão acusador e, assim, conhecer ex officio de matéria atribuída à avaliação exclusiva do autor da ação penal.
Nesse sentido é a lição do prof. AURY LOPES JÚNIOR, que, ao discorrer sobre o tema sob a ótica do art. 385 do CPP, assevera:
"O Ministério Público é o titular da pretensão acusatória, e sem o seu pleno exercício, não abre-se a possibilidade de o Estado exercer o poder de punir, visto que se trata de um poder condicionado. O poder punitivo estatal está condicionado à invocação feita pelo MP através do exercício da pretensão acusatória. Logo, o pedido de absolvição equivale ao não exercício da pretensão acusatória, isto é, o acusador está abrindo mão de proceder contra alguém.
Como conseqüência, não pode o juiz condenar, sob pena de exercer o poder punitivo sem a necessária invocação, no mais claro retrocesso ao modelo inquisitivo.
(...)
Portanto, viola o sistema acusatório constitucional a absurda regra prevista no art. 385 do CPP, que prevê a possibilidade de o Juiz condenar ainda que o Ministério Público peça a absolvição. Também representa uma clara violação do Princípio da Necessidade do Processo Penal, fazendo com que a punição não esteja legitimada pela prévia e integral acusação, ou melhor ainda, pleno exercício da pretensão acusatória." (in Direito Processual Penal e sua conformidade constitucional, Volume II, Editora Lumen Iuris, Rio de Janeiro, 2009, p. 343).
Seguindo o mesmo entendimento, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais tem reconhecido a impossibilidade de condenação quando o Ministério Público pede a absolvição. Confira-se:
“APELAÇÃO - TRÁFICO DE DROGAS - PEDIDO DE ABSOLVIÇÃO APRESENTADO PELO MINISTÉRIO PÚBLICO EM ALEGAÇÕES FINAIS - VINCULAÇÃO DO JULGADOR - SISTEMA ACUSATÓRIO - ABSOLVIÇÃO DECRETADA. I - Deve ser decretada a absolvição quando, em alegações finais do Ministério Público, houver pedido nesse sentido, pois, neste caso, haveria ausência de pretensão acusatória a ser eventualmente acolhida pelo julgador. II - O sistema acusatório sustenta-se no princípio dialético que rege um processo de sujeitos cujas funções são absolutamente distintas, a de julgamento, de acusação e a de defesa. O juiz, terceiro imparcial, é inerte diante da atuação acusatória, bem como se afasta da gestão das provas, que está a cargo das partes. O desenvolvimento da jurisdição depende da atuação do acusador, que a invoca, e só se realiza validade diante da atuação do defensor. III - Afirma-se que, se o juiz condena mesmo diante do pedido de absolvição elaborado pelo Ministério Público em alegações finais está, seguramente, atuando sem necessária provocação, portanto, confundindo-se com a figura do acusador, e ainda, decidindo sem o cumprimento do contraditório. IV - A vinculação do julgador ao pedido de absolvição feito em alegações finais pelo Ministério Público é decorrência do sistema acusatório, preservando a separação entre as funções, enquanto que a possibilidade de condenação mesmo diante do espaço vazio deixado pelo acusador, caracteriza o julgador inquisidor, cujo convencimento não está limitado pelo contraditório, ao contrário, é decididamente parcial ao ponto de substituir o órgão acusador, fazendo subsistir uma pretensão abandonada pelo Ministério Público” (TJMG – Apelação Penal 1.0024.09.480666-8/0001(1) – 5ª Câmara Criminal – Rel. Des. ALEXANDRE VÍCTOR DE CARVALHO – j. 23/03/2010 – DJ 12/04/2010) (grifamos).
“APELAÇÃO CRIMINAL - TRÁFICO DE DROGAS - PEDIDO DE ABSOLVIÇÃO APRESENTADO PELO MINISTÉRIO PÚBLICO EM ALEGAÇÕES FINAIS - VINCULAÇÃO DO JULGADOR - SISTEMA ACUSATÓRIO - DELITO DE COLABORAÇÃO COM ORGANIZAÇÃO CRIMINOSA NO TRÁFICO DE DROGAS - ATIPICIDADE OBJETIVA - ABSOLVIÇÃO MANTIDA.
1- Deve ser decretada a absolvição quando há pedido nesse sentido constante das alegações finais do Ministério Público que implica ausência de pretensão acusatória a ser eventualmente acolhida pelo julgador.
2- O sistema acusatório sustenta-se no princípio dialético que rege um processo de sujeitos cujas funções são absolutamente distintas, a de julgamento, de acusação e a de defesa. O juiz, terceiro imparcial, é inerte diante da atuação acusatória, bem como se afasta da gestão das provas, que está cargo das partes. O desenvolvimento da jurisdição depende da atuação do acusador, que a invoca, e só se realiza validade diante da atuação do defensor.
3- Afirma-se que, se o juiz condena mesmo diante do pedido de absolvição elaborado pelo Ministério Público em alegações finais está, seguramente, atuando sem necessária provocação, portanto, confundindo-se com a figura do acusador, e ainda, decidindo sem o cumprimento do contraditório.
4- A vinculação do julgador ao pedido de absolvição feito em alegações finais pelo Ministério Público é decorrência do sistema acusatório, preservando a separação entre as funções, enquanto que a possibilidade de condenação mesmo diante do espaço vazio deixado pelo acusador, caracteriza o julgador inquisidor, cujo convencimento não está limitado pelo contraditório, ao contrário, é decididamente parcial ao ponto de substituir o órgão acusador, fazendo subsistir uma pretensão abandonada pelo Ministério Público.
5. O crime do art. 37 da Lei 11343/06 exige que a colaboração tenha como destinatária uma organização criminosa que explora o tráfico e sem a comprovação de tal precedente lógico e obrigatório, é atípica a conduta da acusada”. (TJMG – Apelação Penal 106720829111200011 MG 1.0672.08.291112-0/0001(1) – 5ª Câmara de Direito Criminal – Rel. Des. ALEXANDRE VÍCTOR DE CARVALHO – j. 29/09/2009 – DJ 13/10/2009) (grifamos).
Mutatis mutantis, o entendimento doutrinário e jurisprudencial supraesposado aplica-se ao tribunal do júri.
É que, a nosso pensar, também o processo de competência do Tribunal do Júri rege-se pelo princípio acusatório, pelo que somente os fatos alegados pelas partes em plenário merecem ser apreciados e julgados pelo Conselho de Sentença.
Nesse contexto normativo, pergunta-se:
Pode o juiz presidente do júri submeter à votação dos jurados uma circunstância qualificadora que, embora constante da pronúncia, seu reconhecimento não foi pedido expressamente em plenário pelo Ministério Público ou foi pedida sua rejeição pelo mesmo órgão acusador?
A nosso sentir, a resposta negativa se impõe.
É que também o processo de competência do tribunal do júri rege-se pelo princípio acusatório, pelo que somente os fatos alegados pelas partes em plenário merecem ser apreciados e julgados pelo Conselho de Sentença.
Dessarte, ainda que determinada qualificadora tenha sido acolhida na pronúncia, ela somente pode ser submetida à apreciação dos jurados se o Ministério Público ou sua assistência a sustentarem em plenário.
Dir-se-á que as qualificadoras, embora não sustentadas pelo Ministério Público, devem ser quesitadas em respeito à soberania dos jurados e com base no parágrafo único do art. 482 do CPP, que reza in litteris:
"Art. 482. O Conselho de Sentença será questionado sobre matéria de fato e se o acusado deve ser absolvido.
Parágrafo único. Os quesitos serão redigidos em proposições afirmativas, simples e distintas, de modo que cada um deles possa ser respondido com suficiente clareza e necessária precisão. Na sua elaboração, o presidente levará em conta os termos da pronúncia ou das decisões posteriores que julgaram admissível a acusação, do interrogatório e das alegações das partes" (grifamos).
Ora, ora!
A norma do parágrafo único do art. 482 do CPP merece uma interpretação sistemática, de tal sorte a ajustá-la ao comando do mencionado art. 129, I, da CF.
O texto desse parágrafo único é claro quando afirma que, na elaboração dos quesitos, o juiz presidente “levará em conta os termos da pronúncia ou das decisões posteriores que julgaram admissível a acusação, do interrogatório e das alegações das partes” (grifamos).
Percebe-se que a norma em análise dá relevância às “alegações das partes”. Não é por acaso isso!
Assim, a interpretação sistemática desse parágrafo único deve ser no sentido de que:
a) a pronúncia define os contornos da acusação, impedindo que o Ministério Público e sua assistência formulem acusação diferente da que reconhecida na pronúncia, alegando, g., uma qualificadora que dela não consta;
b) se o Ministério Público sustentar em plenário a acusação de homicídio qualificado, conforme os termos da pronúncia, o juiz deve formular o quesito corresponde à qualificadora alegada e submetê-lo à votação dos jurados;
c) se o Ministério Público não sustentar uma qualificadora reconhecida na pronúncia ou, como sói acontecer, sustentar que ela não esta configurada no caso, o juiz não deve formular qualquer quesito sobre ela;
d) se o juiz presidente insistir em quesitar e submeter à votação uma qualificadora não sustentada em plenário pela acusação, violará o disposto no precitado art. 129, I, da CF.
Alegar-se-á que a não submissão da qualificadora em tela violaria o princípio da soberania dos veredictos, positivado no art. 5º, XXXVIII, c, da CF.
“CF, art. 5º. (...)
XXXVIII - é reconhecida a instituição do júri, com a organização que lhe der a lei, assegurados:
a) a plenitude de defesa;
b) o sigilo das votações;
c) a soberania dos veredictos” (grifamos).
Não é bem assim!
A compreensão que dimana do princípio da soberania dos veredictos é no sentido de que o Tribunal do Júri é competente para julgar os crimes dolosos contra a vida, sendo vedado ao Tribunal togado reformar, pelo mérito, a decisão que for proferida pelos jurados no exercício de sua competência constitucional.
O princípio da soberania dos veredictos não autoriza o Tribunal do Júri a conhecer de matéria não alegada pela acusação em plenário.
Em outras palavras, os jurados só podem conhecer da acusação que lhe for apresentada em plenário, não sendo lícito ao magistrado presidente da sessão submeter à votação fatos ou circunstâncias não alegados pelo órgão acusador, sob pena de violação do princípio acusatório e consequente nulidade do julgamento.
Isso porque, por força do referido princípio, a falta de pedido expresso de condenação ou de acolhimento de qualquer circunstância contra o réu, equivale à retirada da acusação.
Nesse diapasão, calha salientar que o Tribunal do Júri pode muito, mas não pode tudo. Tanto que, se proferir uma decisão “teratológica”, que contrarie manifestamente as provas dos autos, o julgamento será anulado pelo Tribunal togado, para que outro seja realizado (CPP, art. 593, III, d, § 3º).
Portanto, forçoso é reconhecer que, na atual conjuntura do processo penal brasileiro, o juiz presidente do júri não pode mais submeter à votação uma qualificadora que, conquanto inserida na pronúncia, não tenha sido sustentada em plenário pela acusação.
César Ramos da Costa. Advogado Criminalista no Estado do Pará, membro do Instituto Paraense do Direito de Defesa - IPDD