Estávamos participando de uma audiência de instrução e julgamento na defesa de uma cliente, quando, para nosso espanto, a magistrada presidente do feito, confessou que ouvia, em tempo real, as conversas telefônicas interceptadas por meio de procedimento por ela própria autorizado.
Diante desse inusitado fato, arguimos, em preliminar de alegações finais orais, o impedimentoda magistrada, que não só rejeitou a preliminar, comotambém condenou nossa cliente.
Interpusemos apelação e, também, impetramos um habeas corpus em que pretendemos fosse reconhecido o impedimento daquela magistrada e, por corolário, fosse decretada a nulidade de todos os atos por ela praticados a partir do momento em que se tornou impedida.
Estas foram as razões da impetração:
Excelentíssima Senhora Desembargadora Presidente do Tribunal de Justiça do Estado do Pará
CÉSAR RAMOS DA COSTA, brasileiro, solteiro, advogado inscrito na OAB/PA sob o nº 11.021, vem, perante este augusto Tribunal, impetrar HABEAS CORPUS PARA DECRETAÇÃO DE NULIDADE PROCESSUAL, com fulcro nos arts. 5º, LXVIII, da Constituição Federal, e 647 e 648, VI, do Código de Processo Penal, em favor de S.N.B.C, brasileira, solteira, doméstica, residente e domiciliada em Ananindeua/PA, contra sentença condenatória proferida pela JUÍZA DA____ VARA CRIMINAL DE__________________/PA nos autos do processo no..., pelas razões fáticas e jurídicas seguintes:
1. PRELIMINAR DE CABIMENTO DE HC PARA QUESTIONAR NULIDADE PROCESSUAL
Preliminarmente, convém demonstrar o cabimento deste HC. Vamos lá.
Já está pacificado no âmbito do Superior Tribunal de Justiça – STJ o entendimento de que é cabível o manuseio do HC para questionar nulidade processual, quando verificado prima facie a incidência de ilegalidade sobre a liberdade ambulativa do réu, hipótese em que tem cabimento mesmo quando pendente apelação interposta com idêntico fundamento.
Nesse sentido, confira-se:
“RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. PENAL. TRÁFICO INTERNACIONAL DE DROGAS. ILEGALIDADE NA INDIVIDUALIZAÇÃO DA PENA. MATÉRIA NÃO APRECIADA PELO TRIBUNAL A QUO. SUPRESSÃO DE INSTÂNCIA. NEGATIVA DO DIREITO DE APELAR EM LIBERDADE. FUNDAMENTAÇÃO. RÉ PRESA EM FLAGRANTE DURANTE TODA A INSTRUÇÃO. FIXAÇÃO DO REGIME INICIAL FECHADO E RECONHECIMENTO DE CIRCUNSTÂNCIAS JUDICIAIS DESFAVORÁVEIS. RECURSO CONHECIDO PARCIALMENTE E DESPROVIDO. ORDEM CONCEDIDA DE OFÍCIO.
(...)4. Apesar de ser a apelação o recurso próprio cabível contra sentença condenatória, não há óbice ao manejo do habeas corpus quando a análise da legalidade do ato coator prescindir do exame aprofundado de provas, como no caso, onde a alegada ilegalidade demanda, apenas, a leitura da razões de decidir do magistrado sentenciante.
5. Recurso parcialmente conhecido e desprovido. Ordem concedida de ofício para determinar ao Tribunal Regional Federal da 3.ª Região aprecie a questão relativa à exacerbação da pena-base, suscitada no writ originário, julgando-a como entender de direito” (STJ – RHC 26191/SP – 5ª T – Rel. Min. LAURITA VAZ – j. 21/09/2010 – DJe 11/10/2010) (grifamos).
“HABEAS CORPUS. PROCESSUAL PENAL. CRIME TIPIFICADO NO ART. 16, INC. III, DA LEI N.º 10.826/03. CONDENAÇÃO. ALEGAÇÃO DE QUE A CONDUTA TÍPICA TERIA SIDO PRATICADA DURANTE A VACATIO LEGIS DA NOVEL LEGISLAÇÃO. QUESTÃO NÃO APRECIADA PELO TRIBUNAL DE ORIGEM SOB A JUSTIFICATIVA DE QUE A TESE DEFENSIVA SERÁ OPORTUNAMENTE EXAMINADA EM SEDE DE RECURSO DEFENSIVO DE APELAÇÃO CRIMINAL AINDA PENDENTE DE JULGAMENTO. POSSIBILIDADE. PRECEDENTES DO STJ.
1. As questões de direito suscitadas na impetração originária exigiriam, no máximo, a simples consulta e análise dos fatos descritos na denúncia, sem qualquer necessidade de cotejo dos elementos probatórios. Portanto, nesse contexto, o fato de ter sido interposto recurso defensivo de apelação que, frise-se, encontra-se pendente de julgamento, não obsta a apreciação de eventual constrangimento ilegal.
(...) 3. Impetração parcialmente concedida tão-somente para determinar ao Tribunal de origem que examine as alegações aduzidas no habeas corpus originário” (STJ – HC 49830/RJ – 5ª T – Rel. Min. LAURITA VAZ – j. 06/06/2006 – DJ 01/08/2006, p. 474) (grifamos).
A propósito, calha destacar que este Tribunal, ao julgar recentemente um HC da autoria do ora Impetrante e que tratava do mesmo tema (nulidade processual) debatido neste mandamus, não só conheceu da impetração, mas concedeu a ordem, nos termos do acórdão cuja ementa transcrevemos:
“HABEAS CORPUS LIBERATORIO PARA DECRETACAO DE NULIDADE PROCESSUAL - APRESENTACAO DAS ALEGACOES FINAIS – OMISSAO DE ADVOGADO CONSTITUIDO - NOMEACAO DA DEFENSORIA PUBLICA - NAO ESGOTAMENTO DE TODOS OS MEIOS POSSIVEIS PARA CITACAO DO PACIENTE - AUSENCIA DE CITACAO POR EDITAL - CONSTRANGIMENTO ILEGAL EVIDENCIADO – NULIDADE POR CERCEAMENTO DE DEFESA - ORDEM CONCEDIDA - DECISAO POR MAIORIA.
I- A jurisprudência pátria firmou entendimento no sentido deque o réu deve se cientificado da renúncia ou omissão de seu advogado para que constitua novo defensor, sob pena de nulidade por cerceamento de defesa. Precedentes no STF e STJ;
II- Esgotados todos os meios disponíveis para a citação pessoal, mister a citação por edital do réu;
III – In casu, constrangimento ilegal evidenciado ante o não esgotamento de todos os meios disponíveis para citação do paciente;
IV - Ordem concedida, decretando a nulidade do processo a partir da nomeação de defensor público para apresentação das alegações finais do paciente e a abertura de prazo para que advogado legalmente constituído apresente as alegações finais em prol do paciente Decisão por maioria” (TJPA – HC 201130140019 – CCrimR – Rel. Des. MARIA EDWIVES MIRANDA LOBATO, Rel. p/ ac. Des. JOÃO JOSÉ DA SILVA MAROJA – j. 03/10/2011 – DJe 7/11/2011).
No caso, convém frisar, ainda, que se optou pelo “remédio heroico”, porque: a uma, tem procedimento mais célere que a apelação; e, a duas, a questão nele suscitada é puramente de direito, pelo dispensa o exame analítico de provas.
Portanto, Excelência, o presente writ merece ser conhecido.
2. SINOPSE FÁTICA
A Paciente – juntamente com outro corréu - foi condenada pela Juíza supracitada como incursa nas sanções previstas nos arts. 157, § 3º, in fine, 211, c/c art. 70, todos do CP, sendo por isso apenada em 27 (vinte e sete) anos e 8 (oito) meses de reclusão, em regime inicial fechado, mais multa (cf. cópia da sentença – doc. 1).
Irresignada, a Paciente, por seu defensor, interpôs tempestivamente recurso de apelação, com fundamento no art. 593, I, do CPP (cf. doc. 2).
Ocorre, Excelência, que a Juíza sentenciante estava legalmente impedida para atuar o processo, porquanto, na fase de investigação policial, exerceu atribuição que a lei confere exclusivamente ao Ministério Público.
Por isso, nas alegações finais apresentadas oralmente, a Defesa da Paciente suscitou a preliminar de impedimento daquela magistrada, a teor do art. 252, I e II, do CPP, questão que foi rejeitada pela sentença ora impugnada (cf. termo de audiência - doc. 3; e sentença – doc. 1).
Daí a presente impetração, por meio da qual se pretende o reconhecimento do impedimento legal da indigitada Autoridade Coatora e, por corolário, a decretação da nulidade de todos os atos processuais por ela praticados nos autos do processo em cujo bojo a Paciente foi condenada.
2. A COAÇÃO ILEGAL: DA VIOLAÇÃO AO DEVIDO PROCESSO LEGAL. DO IMPEDIMENTO DA JUÍZA SENTENCIANTE. DA FALTA DE IMPARCIALIDADE OBEJTIVA
Permissa venia, merece prosperar a pretensão ora deduzida. Vejamos por quê.
Como é cediço, a Constituição Federal consagrou em seu texto o princípio do due processo of law, garantindo que “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal” (art. 5º, inciso LIV).
Por devido processo legal deve-se entender o “processo desenvolvido na forma que estabelece a lei” (CAPEZ, Fernando. CURSO DE PROCESSO PENAL. 12 ed., São Paulo, Saraiva, 2005, p. 30).
E é no campo do devido processo penal que o direito ao julgamento por um juiz subjetiva e objetivamente imparcial se materializa.
Deveras, do plexo de direitos e garantias inerentes ao devido processo legal constitucional (CF, art. 5º, LIV) faz parte o direito público subjetivo de ser julgado por juiz absolutamente imparcial, direito esse que tem suas raízes na dignidade da pessoa humana (CF, art. 1º, III).
Aliás, esse direito (de ser julgado por juiz imparcial), de tão relevante e caro às civilizações democráticas, está consagrado em todos os documentos jurídicos internacionais que versam sobre direitos humanos, especialmente a Declaração Universal dos Direitos Humanos/1948 e a Convenção Americana de Direitos Humanos/1969 (Pacto de São José da Costa Rica).
Toda pessoa tem direito, em plena igualdade, a uma audiência justa e pública por parte de um tribunal independente e imparcial, para decidir de seus direitos e deveres ou do fundamento de qualquer acusação criminal contra ele (Art. 10 da DUDH/1948) (grifamos).
E, sendo signatário do Pacto de São José da Costa Rica (que foi incorporado ao ordenamento jurídico brasileiro pelo Decreto no. 678, de 06/11/92, e que tem status de supralegalidade, conforme precedentes do STF: HC 87585 e RE 466343) -, o Brasil obrigou-se, via Poder Judiciário, a garantir a todas as pessoas o direito de ser julgado por juiz imparcial, nos termos do que dispõe o art. 8º, 1, do referido Pacto, in verbis:
“Artigo 8º - Garantias judiciais:
1. Toda pessoa terá o direito de ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou Tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na apuração de qualquer acusação penal formulada contra ela, ou na determinação de seus direitos e obrigações de caráter civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza” (grifamos).
Exatamente para garantir ao réu esse direito de ser julgado por Juiz imparcial é que o CPP, no seu art. 252, I e II, reza:
Art. 252. O juiz não poderá exercer jurisdição no processo em que:
I - tiver funcionado seu cônjuge ou parente, consangüíneo ou afim, em linha reta ou colateral até o terceiro grau, inclusive, como defensor ou advogado, órgão do Ministério Público, autoridade policial, auxiliar da justiça ou perito;
II - ele próprio houver desempenhado qualquer dessas funções ou servido como testemunha (grifamos).
É a hipótese em debate.
Com efeito, na fase de investigação policial da persecutio criminis, a Autoridade Coatora autorizou a interceptação telefônica dos celulares da Paciente e do corréu, fazendo em decisão datada de.... (cf. doc. 4).
Até aí tudo certo, tudo juridicamente perfeito.
Acontece, Excelência, que aquela Autoridade Coatora acompanhou pessoalmente o procedimento de interceptação por ela autorizado, o que fez conectando um aparelho telefônico (celular ou convencionou) à central de monitoramento da Polícia, a partir do qual ouviu, em tempo real, todas as conversas telefônicas da Paciente e do corréu, entre si e com outros interlocutores.
Tamanha foi a surpresa da Paciente e de seu defensor (o Impetrante) quando tomaram conhecimento desse fato.
Isso porque – pasme, Excelência! - foi a própria Autoridade Coatora quem revelou, em plena audiência de instrução e julgamento, que ouvia – repita-se – em tempo real as conversas interceptadas (cf. termo de audiência – doc. 3; e cópia do DVD anexo – interrogatório do corréu, tempo: 01:37:40-48 – e interrogatório da Paciente, tempo:02:52:45-50).
Ora, Excelência, a Lei 9.296/96, que disciplina as interceptações telefônicas, não defere ao juiz que autorizou a interceptação o poder-dever de acompanhar a diligência e ouvir, em tempo real, as conversas interceptadas.
Esse acompanhamento da diligência (interceptação telefônica autorizada pelo juiz) é atribuição exclusiva do Ministério Público, conforme preceitua o art. 6º da referida Lei 9.296/96, in verbis:
“Art. 6° Deferido o pedido, a autoridade policial conduzirá os procedimentos de interceptação, dando ciência ao Ministério Público, que poderá acompanhar a sua realização” (grifamos).
Pela Lei 9.296/96, cada agente público que atua no procedimento tem uma função bem definida: o juiz autoriza a interceptação, a autoridade policial procede à diligência, e o Ministério Público acompanha o procedimento.
O Juiz que autorizou a interceptação não pode fazer as vezes do Ministério Público e, assim, acompanhar o procedimento por ele autorizado.
É que, se fizer as vezes do Ministério Público, o juiz certamente se vinculará psicologicamente à causa, perdendo a imparcialidade necessária ao exercício da atividade jurisdicional.
A atitude do juiz que assim se comporta viola irremediavelmente o devido processo legal, porque malfere o sistema acusatório e o princípio da imparcialidade.
É por isso que o Superior Tribunal de Justiça, em casos virtualmente semelhantes a este, tem reconhecido a nulidade do processo presidido por juiz que, de qualquer modo, tenha atuado na fase pré-processual ou que tenha exercido atividades próprias da polícia judiciária ou do Ministério Público.
A propósito, vejamos:
“Processo penal (natureza). Provas (produção). Iniciativa (juiz/Ministério Público). Magistrado (imparcialidade).
1. É acusatório, ou condenatório, o princípio informador do nosso processo penal, daí, então, ser vedado ao juiz o poder de investigação. Cabe à acusação a prova da culpabilidade do réu.
2. Incumbe ao juiz, é verdade, dirigir o processo, competindo-lhe assegurar às partes igualdade de tratamento, não lhe sendo lícito, também é verdade, substituir a acusação. Permitido lhe é, isto sim, auxiliar a defesa, tal o eterno princípio da presunção de inocência: "ninguém será considerado culpado..."
3. Pode o juiz ouvir outras testemunhas (Cód. de Pr. Penal, art. 209), porém não o pode fazendo as vezes da acusação, substituindo-a, em caso, como este, em que não havia testemunhas a serem inquiridas, porque não havia testemunhas arroladas pelo Ministério Público (tampouco pela defesa).
4. São diferentes iniciativa probatória e iniciativa acusatória, aquela é lícita, claro é, ao juiz em atitude complementar - por exemplo, tratando-se de diligências cuja necessidade se origine de circunstâncias ou fatos apurados na instrução (atual art. 402).
5. Já a iniciativa acusatória - o desempenho das funções que competem a outrem - bate de frente com princípios outros, entre os quais o da imparcialidade do julgador, e o da presunção de inocência do réu, e o do contraditório, e o da isonomia.
6. Ordem concedida a fim de se anular o processo desde quando se determinou a inquirição” (STJ – HC 143889/SP – 6ª T – Rel. Min. NILSON NAVES – j. 18/05/2010 – DJe 21/06/2010) (grifamos).
“PROCESSUAL PENAL. RECURSO EM HABEAS CORPUS. QUADRILHA. REALIZAÇÃO DE INTERROGATÓRIO POR JUIZ DURANTE A FASE INQUISITÓRIA, ANTES DO OFERECIMENTO DA DENÚNCIA. ARTIGO 2º, PARÁGRAFO 3º, DA LEI DE PRISÃO TEMPORÁRIA. AUSÊNCIA DE PROCEDIMENTO QUE PERMITA AO MAGISTRADO PROCEDER À INVESTIGAÇÃO PRELIMINAR. RETORNO AO SISTEMA INQUISITÓRIO. ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO E GARANTIAS DO CIDADÃO. RECURSO PROVIDO.
1. Hipótese em que o Juiz, antes de haver, sequer, o oferecimento da denúncia, estando ainda no curso da investigação preliminar, se imiscuir nas atividades da polícia judiciária e realizar o interrogatório do réu, utilizando como fundamento o artigo 2º, § 3º, da Lei 7.960/1989.
(...) 4. O magistrado que pratica atos típicos da polícia judiciária torna-se impedido para proceder ao julgamento e processamento da ação penal, eis que perdeu, com a prática dos atos investigatórios, a imparcialidade necessária ao exercício da atividade jurisdicional.
5. O sistema acusatório regido pelo princípio dispositivo e contemplado pela Constituição da República de 1988 diferencia-se do sistema inquisitório porque nesse a gestão da prova pertence ao Juiz e naquele às partes.
6. No Estado Democrático de Direito, as garantias processuais de julgamento por Juízo imparcial, obediência ao contraditório e à ampla defesa são indispensáveis à efetivação dos direitos fundamentais do homem.
7. Recurso provido” (STJ – HC 23945/RJ – 6ª T – Rel. Min. JANE SILVA, Desa. Conv. do TJMG – j. 05/02/2009 – DJe 16/03/2009) (grifamos).
Por seu lado, o Supremo Tribunal Federal já reconheceu violar o devido processo legal a atuação, no processo, de juiz que também atuou na fase pré-processual. Fê-lo ao julgar a ADI 1570/DF, da relatoria do (ex) Ministro MAURÍCIO CORRÊA, no acórdão assim ementado:
“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI 9034/95. LEI COMPLEMENTAR 105/01. SUPERVENIENTE. HIERARQUIA SUPERIOR. REVOGAÇÃO IMPLÍCITA. AÇÃO PREJUDICADA, EM PARTE. "JUIZ DE INSTRUÇÃO". REALIZAÇÃO DE DILIGÊNCIAS PESSOALMENTE. COMPETÊNCIA PARA INVESTIGAR. INOBSERVÂNCIA DO DEVIDO PROCESSO LEGAL. IMPARCIALIDADE DO MAGISTRADO. OFENSA. FUNÇÕES DE INVESTIGAR E INQUIRIR. MITIGAÇÃO DAS ATRIBUIÇÕES DO MINISTÉRIO PÚBLICO E DAS POLÍCIAS FEDERAL E CIVIL. 1. Lei 9034/95. Superveniência da Lei Complementar 105/01. Revogação da disciplina contida na legislação antecedente em relação aos sigilos bancário e financeiro na apuração das ações praticadas por organizações criminosas. Ação prejudicada, quanto aos procedimentos que incidem sobre o acesso a dados, documentos e informações bancárias e financeiras. 2. Busca e apreensão de documentos relacionados ao pedido de quebra de sigilo realizadas pessoalmente pelo magistrado. Comprometimento do princípio da imparcialidade e conseqüente violação ao devido processo legal. 3. Funções de investigador e inquisidor. Atribuições conferidas ao Ministério Público e às Polícias Federal e Civil (CF, artigo 129, I e VIII e § 2o; e 144, § 1o, I e IV, e § 4o). A realização de inquérito é função que a Constituição reserva à polícia. Precedentes. Ação julgada procedente, em parte” (STF – ADI 1570/DF – Pleno – Rel. Min. MAURÍCIO CORRÊA – j. 12/02/2004 – DJ 22/10/2004) (grifamos).
Em seu elucidativo voto, o Ministro MAURÍCIO CORRÊA externou seu entendimento acerca da imparcialidade do julgador. Disse ele:
“Evidente que não há como evitar a relação de causa e efeito entre as provas coligidas contra o suposto autor do crime e a decisão a ser proferida pelo juiz. Ninguém pode negar que o magistrado, pelo simples fato de ser humano, após realizar pessoalmente as diligências, fique envolvido psicologicamente com a causa, contaminando sua imparcialidade” (ADI 1570/DF – Pleno – Rel. Min. MAURÍCIO CORRÊA – j. 12/02/2004 – DJ 22/10/2004) (grifamos).
E porque, tanto o STJ quanto o STF, reconhecem ilegal a participação no processo de juiz que, de algum modo, atuou na fase pré-processual? Simples: porque, se assim o fizer, o juiz tomará conhecimento prévio dos fatos constitutivos do conflito que irá julgar, comprometendo, inevitável e inconscientemente, a chamada IMPARCIALIDADE OBJETIVA.
Imparcialidade objetiva?!!!
É isso mesmo: IMPARCIALIDADE OBJETIVA, que deriva não da relação do juiz com as partes, mas sim de sua relação com os fatos da causa cuja decisão lhe compete.
Veja bem, Excelência!
O exercício legítimo e legal da jurisdição pressupõe que, no caso concreto, o magistrado o faça com imparcialidade subjetiva (dimanada de sua relação com qualquer das partes) e OBJETIVA, que se caracteriza pela inexistência de prévia cognição do juiz acerca dos fatos da causa sub judice.
Como nos ensina o Ministro CÉZAR PELUSO, do STF, a falta da imparcialidade objetiva “incapacita, de todo, o magistrado para conhecer e decidir causa que lhe tenha sido submetida, em relação à qual a incontornável predisposição psicológica nascida de profundo contato anterior com as revelações e a força retórica da prova dos fatos o torna concretamente incompatível com a exigência de exercício isento da função jurisdicional. Tal qualidade, (...), diz-se objetiva, porque não provém de ausência de vínculos juridicamente importantes entre o juiz e qualquer dos interessados jurídicos na causa, sejam partes ou não (imparcialidade dita subjetiva), mas porque corresponde à condição de originalidade da cognição que irá o juiz desenvolver na causa, no sentido de que não haja ainda, de modo consciente ou inconsciente, formado nenhuma convicção ou juízo prévio, no mesmo ou em outro processo, sobre os fatos por apurar ou sobre a sorte jurídica da lide por decidir. Como é óbvio, sua perda significa falta de isenção inerente ao exercício legítimo da função jurisdicional (in voto-vista lançado nos autos HC 94641/BA – 2ª T - Rel. Min. ÉLLEN GRACIE – Rel. p/ ac. Min. JOAQUIM BARBOSA – j. 11/11/2008 – DJe 06/03/2009 – doc. 4).
Para não perder a imparcialidade objetiva, o juiz deve manter a neutralidade em relação ao conflito que irá julgar.
É o que se infere da admoestação do ex-Ministro EROS GRAU, do STF, in litteris:
“A neutralidade impõe que o juiz se mantenha em situação exterior ao conflito objeto da lide a ser solucionada. O juiz há de ser estranho ao conflito. A independência é expressão da atitude do juiz em face de influências provenientes do sistema e do governo. Permite-lhe tomar não apenas decisões contrárias a interesses do governo --- quando o exijam a Constituição e a lei --- mas também impopulares, que a imprensa e a opinião pública não gostariam que fossem adotadas. A imparcialidade é expressão da atitude do juiz em face de influências provenientes das partes nos processos judiciais a ele submetidos. Significa julgar com ausência absoluta de prevenção a favor ou contra alguma das partes. Aqui nos colocamos sob a abrangência do princípio da impessoalidade, que a impõe” (STF – HC 95009/SP – Pleno – Rel. Min. EROS GRAU – j. 06/11/2008 – DJe 19/12/2008) (grifamos).
No caso, ao acompanhar pessoalmente a interceptação telefônica por ela autorizada e ouvir em tempo real as conversas interceptadas, Sua Excelência, além de não se manter na neutralidade, tomou conhecimento adrede dos fatos que iria julgar – como de fato julgou -, pelo que perdeu a imparcialidade objetiva.
Daí a pergunta que não quer calar: ao proceder dessa forma, a Autoridade Coatora não perdeu a imparcialidade objetiva, tornando-se impedida para presidir o processo?
Pensamos que sim, Excelência, pensamos que sim!!!
Nesse cenário de falta de imparcialidade objetiva da Autoridade Coatora, nem mesmo uma defesa composta por juristas de escol como CÍCERO, ULPIANO, EVARISTO DE MORAES, NELSON HUNGRIA, JOÃO ROMEIRO NETO, EVANDRO LINS E SILVA, CELSO DELMANTO e tantos outros teria chances de modificar o resultado final do processo, qual seja, a condenação do réu – no caso, da Paciente.
Dir-se-á que a falta de imparcialidade objetiva não está prevista no rol do art. 252 do CPP como causa legal de impedimento do juiz. Não é bem assim!
Para o supracitado Ministro CÉZAR PELUSO, a questão da imparcialidade objetiva encontra amparo na leitura do art. 252, III do CPP, à luz dos princípios e regras constitucionais do devido – e justo - processo legal. Vejamos:
“Pensa a jurisprudência dominante que, à luz do disposto no art. 252 do Código de Processo Penal, não esteja o juiz que tenha atuado em outro processo a respeito da matéria, (sic) impedido de exercer o ofício, porque seriam taxativas as hipóteses ali previstas, das quais a do inc. III diria respeito atuação em fases diversas do mesmo processo.
(...) Não me parece, data venia, seja esta a litura mais acertada, sobretudo perante os princípios e as regras constitucionais que a devem iluminar (...).
(...) A regra processual penal não pode valer apenas para a hipótese da chamada progressão vertical do processo, a qual exclui a atuação de juiz que haja atuado em outro grau de jurisdição da mesma causa, pois as razões que sustentam tal exclusão, de todo em todo se aplicam ao fenômeno do desenvolvimento processual horizontal, proibindo, diante de igual presunção de pré-juízo, exerça jurisdição, no processo principal, o juiz que tenha recolhido provas em procedimento preliminar sobre os fatos” (in HC 94641/BA – 2ª T - Rel. Min. ÉLLEN GRACIE – Rel. p/ ac. Min. JOAQUIM BARBOSA – j. 11/11/2008 – DJe 06/03/2009 – doc. 4).
De fato, a falta de imparcialidade objetiva não pode deixar de ser vista como uma legítima e legal causa de impedimento do juiz.
Afinal, viola o devido processo legal e fere de morte a dignidade da pessoa humana (CF, art. 1º, III) o julgamento do réu pelo mesmo juiz que autorizou a interceptação telefônica e acompanhou o respectivo procedimento, ouvindo em tempo real as conversas interceptadas, visto que, nessa hipótese, comprometido está a sua imparcialidade objetiva – que se caracteriza pela inexistência, por parte do juiz, de prévio conhecimento dos fatos que irá julgar.
E foi o Supremo Tribunal Federal quem reconheceu que a falta de imparcialidade de objetiva constitui fundamento suficiente para afastar o juiz do processo. Fê-lo no julgamento do HC 94.641/BA, que tratava de um caso em que o juiz, após colher depoimento em procedimento preliminar de investigação de paternidade, determinou a remessa de cópia dos autos ao Ministério Público, que ofereceu denúncia recebida pelo mesmo juiz, que, ao final, condenou o réu.
Seguindo voto divergente do Min. JOAQUIM BARBOSA, o STF concedeu a ordem impetrada naquele HC, fazendo-o nos termos do acórdão que recebeu esta ementa:
“HABEAS CORPUS. Processo Penal. Magistrado que atuou como autoridade policial no procedimento preliminar de investigação de paternidade. Vedação ao exercício jurisdicional. Impedimento. Art. 252, incisos I e II, do Código de Processo Penal. Ordem concedida para anular o processo desde o recebimento da denúncia” (STF – HC 94641/BA – 2ª T - Rel. Min. ÉLLEN GRACIE – Rel. p/ ac. Min. JOAQUIM BARBOSA – j. 11/11/2008 – DJe 06/03/2009).
Nessa linha argumentativa, vale trazer à colação o magistério de ANTÔNIO CARLOS DE ARAÚJO CINTRA, ADA PELLEGRINI GRINOVER e CÂNDIDO RANGEL DINAMARCO, que, sobre o tema imparcialidade, afiançam:
“A imparcialidade do juiz é uma garantia de justiça para as partes. Por isso, têm elas o direito de exigir um juiz imparcial: e o Estado, que reservou para si o exercício da função jurisdicional, tem o correspondente dever de agir com imparcialidade na solução das causas que lhe são submetidas” (TEORIA GERAL DO PROCESSO. 13. ed., São Paulo, Malheiros, 1997, p. 52) (grifamos).
No mesmo sentido é a advertência do mestre TOURINHO FILHO:
“Não se pode admitir um Juiz imparcial. Se o Estado chamou a si a tarefa de dar a cada um o que é seu, essa missão não seria cumprida se, no processo, não houvesse imparcialidade do Juiz” (MANUAL DE PROCESSO PENAL. 10. ed., São Paulo, Saraiva, 2008, p. 18) (grifamos).
E, como bem enfatizou o Desembargador Federal do Tribunal Regional Federal da 5ª Região, Dr. PAULO ROBERTO DE OLIVEIRA LIMA, relator da Exceção de Suspeição no. 787 – CE (200681000097030), julgada em 12/07/2007, “A IMPARCIALIDADE NO JUIZ É O PRIMEIRO ATRIBUTO A SER EXIGIDO. SUPERA, ATÉ, O REQUISITO DA HONESTIDADE, POSTO QUE COM ELA SE CONFUNDE”.
Nessa ordem de ideias, calha salientar que a atuação, no processo, de juiz impedido constitui nulidade de natureza absoluta. Disseram-no o STF e o STJ em julgados como estes:
“MINISTRO DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA QUE VEM A JULGAR RECURSO INTERPOSTO PELO RÉU CONDENADO EM PROCESSO NO QUAL ESSE MESMO MAGISTRADO ATUOU, EM MOMENTO ANTERIOR, COMO MEMBRO DO MINISTÉRIO PÚBLICO - INADMISSIBILIDADE - HIPÓTESE DE IMPEDIMENTO (CPP, ART. 252, II) - CAUSA DE NULIDADE ABSOLUTA DO JULGAMENTO - NECESSIDADE DE RENOVAÇÃO DESSE MESMO JULGAMENTO, SEM A PARTICIPAÇÃO DO MINISTRO IMPEDIDO - QUESTÃO DE ORDEM QUE SE RESOLVE PELA CONCESSÃO, DE OFÍCIO, DE "HABEAS CORPUS" EM FAVOR DO ORA AGRAVANTE” (STF – AI 706078 QO/RJ – 2ª T – Rel. Min. CELSO DE MELLO – j. 10/03/2009 – DJe 23/10/2009 (grifamos).
“(...) O impedimento é proibição legal do exercício da jurisdição, cujo descumprimento constitui nulidade absoluta” (STJ – HC 152713/RJ – 5ª T – Rel. Min. GILSON DIPP – j. 03/02/2011) DJe 21/02/2011).
Alegar-se-á, como faz a Autoridade Coatora, que a atuação dela se deu com base na Resolução 59, de 09 de setembro de 2008, alterada pela Resolução 89, ambas do CNJ.
Não se nega que o magistrado, no tocante às interceptações telefônicas, deve observar as normas estabelecidas na retrocitada Resolução. Isso é inegável!!!
Entrementes, essa Resolução - tal como se dá com a Lei 9.296/96 – NÃO AUTORIZA O JUIZ A FAZER AS VEZES, SEJA DA POLÍCIA, SEJA DO MINISTÉRIO PÚBLICO, ACOMPANHANDO O PROCEDIMENTO DE INTERCEPTAÇÃO TELEFÔNICA POR ELE AUTORIZADO E OUVINDO EM TEMPO REAL AS CONVERSAS INTERCEPTADAS. Isso está claro, claríssimo, no texto da Resolução – é só conferir (doc. 5).
Portanto, Excelência, imperioso é reconhecer o impedimento legal da Autoridade Coatora, situação que configura um inexorável constrangimento ilegal sobre a liberdade ambulativa da Paciente, o que recomenda - para não dizer impõe - a concessão do presente writ.
4. CONCLUSÃO
Ante todo o exposto e sem querer incorrer em vã logomaquia, o Impetrante postula o conhecimento do writ e a concessão da ordem impetrada, para o fim de RECONHECER O IMPEDIMENTO LEGAL DA AUTORIDADE COATORA e, por corolário, DECRETAR AS NULIDADES DE TODOS OS ATOS POR ELA PRATICADO A PARTIR DO MOMENTOEM QUE SE TORNOU IMPEDIDA, quais sejam, decreto de prisão preventiva, recebimento da denúncia e os atos subsequentes até a sentença, inclusive.
Anulado o decreto prisional, pleiteia-se a expedição de alvará de soltura em favor da Paciente.
Por derradeiro, o Impetrante declara, com base no art. 544, § 1º, 2ª parte, c/c art. 365, IV, ambos do CPC, que os documentos que instruem este HC conferem com os contidos nos autos do processo no..., que se encontram no Juízo Coator.
No mais, Excelência, espera-se por... Justiça!!!
Local, data.
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César Ramos da Costa**
OAB/PA 11021
* Artigo publicado na Revista Prática Jurídica, Ano X, no. 117, de 31 de dezembro de 2011, Editora Consulex.
** CÉSAR RAMOS DA COSTA é advogado criminalista no Estado do Pará, Vice-Presidente do Instituto Paraense do Direito de Defesa - IPDD e membro da Academia Paraense de Júri – APJ.